Pinocchio e o italiano que não ouvi

Raphani Margiotta
3 min readFeb 24, 2021
Pinocchio ganha nova vida nas telas com filme dirigido por Matteo Garrone.

Pinocchio estreou nos cinemas brasileiros no fim de janeiro. Apesar do atraso por conta da pandemia (a estreia estava prevista para março de 2020), não faltou quem se interessasse a assistir ao filme no cinema, ainda que em condições bastantes protocolares de distanciamento.
Um envelhecido Roberto Benigni surge de costas logo na primeira cena. A pouca luz que entra pela janela mal ilumina o nosso falegname Geppeto, que trabalha no único cômodo empobrecido de sua casa.

Geppetto criando o burattino.

Logo na primeira fala, as expressões do ator italiano se chocam com o idioma que ouvimos da tela do cinema. O inglês italianizado da dublagem em nada se parece com a bella lingua que ansiávamos ouvir. E no entanto é o que está disponível para quem assiste ao filme fora da Itália. Mesmo em países de língua não inglesa, a opção de filme legendado traz apenas o áudio em inglês, e não o original em italiano. Foi o que me disse Cris, a simpática e prestativa recepcionista do Reserva Cultural em Niterói quando telefonei para obter informações sobre o filme.

“Comecei a ver pessoas se levantando e indo embora e fui procurar entender o que estava acontecendo”, conta ela.

Cris relata que não estava entendendo a reclamação das pessoas, foi então que o proprietário do Reserva que estava presente em uma dessas ocasiões lhe explicou que todos os cinemas do Brasil (e de outros países) estavam exibindo apenas a versão dublada em inglês. Era uma questão de mercado.

Proprio così. Better saying, exactly this.
Julgou-se que a cópia para distribuição internacional do filme deveria ser dublada em inglês por ter “mais valor de mercado”, e assim foi. Acontece que algumas, senão muitas pessoas, foram ao cinema com a expectativa de não apenas assistir ao filme, mas sobretudo de ouvi-lo. Ouvir o italiano melodioso de um Geppetto (e não qualquer Geppetto, mas um Geppetto Benigni) em sofrimento em busca do filho perdido. Ouvir um Pinocchio com a voz lamoriosa depois de ser tanta vezes enganado.

Pinocchio faz escolhas erradas interpretado por Federico Ielapi.

E invece… Ouvimos tudo isso em inglês. No máximo somos consolados com a sonoridade dos nomes dos personagens preservados na língua original e o “Babo” infantil e gracioso do burattino.

Por falar em ouvir, a sonoplastia acertou quando, à medida que Pinocchio se mexe, o ruído da madeira nos lembra o tempo todo que aquele ser de olhos expressivos não passa, ainda, de um boneco falante. Embora erre como um ser humano. Como também errou quem, lá no topo da pirâmide, decidiu que as outras gentes não podiam usufruir da língua original em que foi imaginada, pensada e escrita a história que virou clássico.

Segundo Italo Calvino, a melhor forma de ler um livro é fazê-lo na língua original. No caso do cinema, a meu ver, a única forma de perceber todas as nuances de uma história é captá-la no áudio original, ainda que com legenda.

Sobre imagem, limito-me a dizer que a pobreza retratada no filme impacta tanto quanto a ausência da língua. Gravadas em cidades e vilarejos da Toscana, as cenas combinam a miséria humana, em ambos os sentidos, e a beleza das paisagens italianas.

A magia do impossível no longa em formato live-action.

Para além do encanto da fábula, ou mesmo da ideia que a Disney construiu no imaginário coletivo em sua versão suavizada, o filme é — apesar de longo em demasia — um retorno ao que há de mais belo na literatura: o preenchimento de nossa alma com uma cultura que nos proporcione ao mesmo tempo beleza e significado.

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Raphani Margiotta

Jornalista e letróloga, apaixonada por teologia, literatura e histórias em geral. Leitora e escritora na menor parte do tempo. Na maior parte, mãe.